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20 janeiro 2004

"Distracção"

"Lugar de imortalidade ocupado,
verificas três vezes ao dia!
Discurso interrompido,
impedimento de aceitação!
Selvagem foi,
quem te negou amor!

Tornado eunuco,
carpiste em frente a um ecrã,
de voltas pelo mundo!
Melodia dissipada em escala menor,
adagio de intenção suprimida,
andamento abandonado.

Desculpa-me,
mas o meu ombro não o foi
para tu nele chorares!
Amigo de ninguém te fizeste,
a saudade de nenhum te envolve!
Até à morte!

Silêncio ofereces...
Silêncio te devolvem...
Silêncio realizaste...
Silêncio respiras...
Silêncio suspiras...

Em silêncio pensas...
Em silêncio esperas...
Em silêncio te imaginas...
Em silêncio murmuras...
Em silêncio ouves o teu choro silencioso...

Quem és tu?
Já não quero saber!

Abandonei-te consciente."

19 janeiro 2004

"Generosidade"

"É sempre em paz que te encontro! Sentada, neutra, segura e escorreita... tenho desejado fazer-te parte da minha guerra, mas tu nunca estás do meu lado, tampouco contra mim. Desejo-te inimiga, violenta, agressiva, impiedosa perante os homens que caem a teus pés. Quando os vejo no chão, imagino-te a calcá-los, silenciada pelo desprezo que lhes tenho, mas que tu não! Eu próprio, desejo a tua crueldade, a tua impureza contra mim! Mas tu, nessa perfeição desumana, feres-me com a tua compaixão, crueldade perfeita, infinita bondade!
Abraças-me quase sempre... Os teus olhos não encontram em mim algum mal. Meigos, eles libertam gotas de luz que com graça me deixas sorver, como beneficio de compensação da minha meia vida, quase reduzida a nada... E quando me abandonas para cuidar de outra alma como a minha, deixas-me só...
O teu amor é belo porque é uma dádiva partilhada..."

17 janeiro 2004

"O Vendedor, o Soldado, o Crítico, o Pervertido e Eu Próprio."

Disse o Vendedor:

“Encontramos a sua alma gémea!
E como é o nosso melhor cliente,
vou fazer-lhe uma pequena atençãozinha!
Só terá que pagar as actualizações anuais!
É ou não é uma pechincha?”
Ó escasso privilégio, o dos afortunados!
Que de um rebanho inteiro de ovelhas negras
Só a branca foi escolhida:

EU!

Vociferou o soldado:
“Tenho medo!
Não da guerra mas de ti!
Da tua falsa sabedoria adquirida as pressas
na Literatura Inclusa do Antipirético
legalmente obtido sem receita médica!”
Ó quão pesada é a pena
Dos ignorantes que se arrastam pelo mundo,
estrumando as calças
quando se confrontam com alguém como:

EU!

Escreveu o Crítico:

“Sobre ti caíra o meu dedo calunioso,
Que vergonhosamente manchará a reputação que não tens!
Que o que sair pela minha voz e pela minha caneta
Seja a profecia da vida,
Que quero que tenhas!”
Ó critica gratuita!
Louvada seja a tua subsistência,
que sejas muito generosa para quem te venera!”
Entretanto assobio e pergunto:

Quem? EU?

Boçalmente Berrou o Pervertido:

“O pervertido aqui és tu!
Hipócrita, merdoso, preconceituoso, cobarde!
Não vales o mais abafado dos meus peidos!”
Ó inútil raiva,
Que seja feita a tua vontade!
Que o teu ódio te traga a felicidade que procuras!
Porque com ou sem ela,
O infeliz será sempre acusado de ser como:
EU!

E da janela do prostíbulo
um a um e em coro,
Todos eles gritam:
“Junta-te a nós ou morre!”

Com voz tímida respondo:

Eu? Nem morto!

13 janeiro 2004

"A Corrente "

“O raciocínio de nenhures
adopta hoje uma nova forma,
verga-se perante o mundo,
humilde, casto e singular.

O falocrata famoso
desprende-se do bem.
Anestesia local,
está redondamente enganada!

Estive cá anteontem,
com os meus volumosos testículos.
Não é prático,
mas tem estilo.

Amei duzentas mulheres
Surdas, cegas e mudas
Era fácil comunicar,
Mas não com as frigidas.

Pedi perdão,
Mas adiantou muito pouco.”

09 janeiro 2004

"Ensaio sobre o Adultério"

Conseguia ler-te nos olhos, a tua expressão não enganava ninguém:
“Quem és tu?” - dizias tu para ti própria, pensando em mim. - “Vives cada momento a odiar e a amar toda a gente!”
E eu com toda a minha raiva dizia-te:
“Quem tu és e porque me olhas assim?”
E com esse sorriso intrigante apertavas-me a mão como quem diz:
“Por ti cometeria adultério... Contigo...” - em voz alta - "Olá Daniel!"

Primeira Quebra Cronológica.

“Quem era este?” - perguntaste tu àquela multidão.
Foi de facto um choque frontal...
Vinte anos!
Sim! Vinte anos sem ter amado alguém. Esse era o problema com que a tua consciência se debatia.
O meu era a incerteza de saber se alguém sairia daqui magoado...

Segunda Quebra Cronológica.

Não, magoado não saiu ninguém. Ficamos todos lá dentro a ler uma revista qualquer, todos juntos a tentar arduamente cultivarmo-nos. Não dissemos palavra um ao outro. Deitei os olhos ao teu traseiro...

Terceira Quebra Cronológica.

Que amor o meu...
Eu sozinho aqui...
Tu sozinha lá...
Só, com o teu olhar de indiferença sobre a bela família que poderíamos ter sido, ou então destruído...

08 janeiro 2004

Alínea Segunda: "Êxodo"

“A vida é feita de escolhas, e eu fui obrigado a tomar mais uma. Reparti os meus bens por todos aqueles que um dia me sorriram. Foi muito fácil, os meus bens eram escassos e os sorrisos recebidos também. Já estava mais que na hora de cortar o cordão umbilical, e partir...
Imaginei quais seriam as reacções, e todas pareciam ser indiferentes à minha inesperada partida. Tive medo. A relação com o passado é sempre dolorosa, e eu tinha uma vida inteira para me arrepender, da dor ou da falta dela. Do futuro nunca se consegue esboçar, nem um traço.
E pior do que remorsos, é sentir o peso frio de não os ter...”

06 janeiro 2004

"Errata do Apocalipse"

Segundo Barrabás Amaral.

"No meu sonho vi...
crianças de onze anos
serem devoradas por B.M.W’s
mascarados de gestores de empresas.
Monumentos esculpidos em merda
serem idolatrados em idiomas mortos!
Dum chafariz jorrava urina,
e os machos da minha espécie
eram sodomizados...
pelo chifre em espiral
de um corcel mitológico,
do novo Olimpo emergente...

Eu vi o céu...
que sempre foi negro,
virar azul florescente!
O pecado a virar virtude!
E a arte,
que era divina,
desumanizar-se!
O sonho morreu,
o medo cessou,
e a morte “bateu a bota...”

Ouvi...
fêmeas da minha espécie
a entoar em uníssono
arrotos em ré menor!
Primeiro veio a seca,
depois a fome!
E depois os antropófagos
“meteram a viola ao saco”
e tornaram-se vegetarianos.

Tive...
A desoladora visão
Da promessa por cumprir.
A vitória da comunidade
Pela derrota do homem só,
que em seu tempo disse:
“Dos fracos não reza a história”!

Eu senti...
Saudades do paraíso sem espelhos,
em que eu não era eu,
e ninguém me conhecia!
Vi deuses arrependidos
e demónios beatificados!
Livros queimados,
mães sem filhos
e pais assexuados!

E ouvi...
a ausência da luz,
a beleza perversa,
e uma salva de palmas!

Ajoelhado implorei...
“Luke Kelly!
We miss you so much...
Please come back,
with you sweet voice,
your rebel smile,
your five string banjo,
and buy us a pint!
Promisse never to go back to heaven!
We need you down here, without you we are nothing!”
Mas ele não respondeu...

Os profetas messiânicos
Enviavam por S.M.S. a nova ordem:
“O mundo é um grand erro ortogräfico! :) ”
E os golfinhos foram oferecidos em holocausto
A um novo deus autocolante.

Vi...
Junkies que mentiam,
roubavam,
feriam e matavam.
Pela nova droga:
O AFECTO LÍQUIDO!"

02 janeiro 2004

Alínea Primeira - “A Génese”

"E apareci do nada,
da mais despida das inutilidades.
Nem costela,
nem folhas de parra,
nem paraísos, maçãs ou serpentes.
Eu sozinho.

O carro alegórico
da alegoria bíblica.
Zigurate da Babilónia,
polifonia poliglota!
Népias!
Estava sozinho!

Sem fralda, berço ou roca!
Sem dentes, leite ou pó!
Sem escola, lancheira ou tinta de aparo!
Sem pelos púbicos, acne ou voz de homem!
Sem mulher, filho ou amor!
Só eu!

Sempre redundante!
Sempre discutível!
Irrelevante!
Dispensável!
Amorfo!
Olvidável!
Antipático!
Anunciei-me ao mundo:

Se me quiserem, estarei sozinho!"